terça-feira, 26 de novembro de 2013

PASSISTAS E MALANDROS, ENTRE A VIDA E O PERSONAGEM



Há muita discussão e barulho nesse tema que permeia questões de expressão artística, religião e gênero sexual entre os passistas masculinos. Passista é todo sambista que domina o samba no pé, o solista da dança do samba com grande capacidade comunicacional através desta dança. Institucionalmente, deve estar ligado a uma ala de passistas em alguma escola de samba ou bloco.  

Mas o que tem a ver passistas com malandros? Selecionei alguns estudos e depoimentos de alguns sambistas sobre o assunto.

Segundo Roberto Goto: "A estória da cultura brasileira registra duas linhagens de malandros: uma do século 16, iniciada com o hábil menestrel Francisco de Vacas, incorrigível comparsa de D. Álvaro da Costa Filho, o primeiro boêmio do Brasil; a outra viria dos africanos, do negro ladinos que por força dos martírios da escravidão, obrigava-se a aprender as artimanhas de seus pares, com quem convivia, para evitar punições  e garantir sua segurança"

Há muito que a figura do malandro habita o imaginário brasileiro, fazendo-se presente nas formas de saber ligadas à tradição oral. A origem do malandro está ligada às camadas negras e pobres da população e remonta ao final do século XIX, com a abolição da escravatura. Em tal cenário, a negação do trabalho, por parte de negros recém-libertos, aparecia como forma de recusa a qualquer ameaça à liberdade então obtida. Muitos assumiam trabalhos temporários, que logo eram substituídos pelo ócio e pela vadiagem. Empenhavam-se em usar seus corpos para o prazer, como possibilitado, por  exemplo, pela dança (CABRAL, 2012).

O que não quer dizer que todo "malandro" sambasse. Meu avô, Oscar Ferreira Martinho foi um grande malandro de sua época, mas pelo que eu sei, não sambava. Tive a oportunidade de conhecer muitos Malandros e nenhum deles gostava muito de sambar no pé. Vejamos o que contou  Herivelton Martins numa entrevista à José Carlos Rego:

"O comportamento das pessoas modificava-se lentamente nos anos 40, homem por exemplo, não sambava fora do morro. Nos desfiles apenas evoluía, marcava passo, mas não sambava" (REGO, 1996).

E mais opiniões a respeito:

"Quem falar em samba de malandro atualmente, ou não sabe o que é samba ou não sabe o que é malandro"
Dionísio Mendes, ex passista, ex mestre-sala e atual membro da diretoria do Salgueiro.

"Não existe samba de malandro, existe samba masculino"
Wagner Gaspar, passista.

"O tão falado samba de malandro é para mim apenas uma opção de estilo de bailar, se vestir, e consequentemente se comportar [...] malandro não está condicionado a ser passista [...] sofro influencias de outras danças populares e acho importante em virtude da individualidade criativa do passista"
Fábio Batista, passista, bailarino e coreógrafo.

Atualmente quase todas as alas de passistas masculino adotam o estilo "malandro", o que se traduz no figurino e na coreografia, que juntos compõe o personagem do malandro.
Quanto ao figurino é bem verdade que os ternos "a la" malandro anos 30, só são usados nos ensaios e em algumas esparsas apresentações, já que no desfile os passistas masculinos vestirão uma fantasia adequada ao enredo, que geralmente em nada lembra o tal perseguido estilo malandro.
Entendo o samba, e me refiro à dança, como algo natural no passista, algo que flui, que lhe escapa, de maneira quase incontrolável quando ele ouve o samba. Seus passos são irrepetíveis, criativos e improvisados. Não há lugar para coreografias que interfiram no samba propriamente dito. E as expressões corporais são oriundas de sentimentos pessoais e da cultura. Quem nos confirma isso é Gabriel Castro, coordenador de passistas do GRES Imperio Serrano e defensor do estilo ao relatar toda sua vivência numa família de sambistas:

" [...] este personagem começou a se compor dentro de mim ainda na casa da família do meu pai [...] tinha seis tios, todos malandros [...] o samba faz parte de mim desde minha concepção [...] além da própria família observava os mais antigos [...] como efetivamente não tive ninguém prá ensinar-me, desenvolvi um estilo próprio [...] .

O mesmo serve para o estilo malandro de ser. Um estilo é próprio, é pessoal, se encaixa ou não, deve ser natural na pessoa que o adota. Como se pode querer impor a alguém algo que não faz parte da sua vivência cultural? Marcel Mauss afirma que tudo que fazemos com nosso corpo é resultado da nossa formação cultural.
E a discussão se agrava no tocante aos homossexuais. É inegável que muitos passistas são homossexuais. Se por um lado não devem sambar como mulheres, por outro, não devem ser obrigados a sambar como se malandros fossem. Resultado dessa imposição: uma imitação forjada e de mal gosto. Ah! mas antigamente os passistas homossexuais sambavam como homens. Ok. Mas antigamente, não só no samba, como em qualquer outro lugar da sociedade, os homossexuais eram proibidos de "sairem do armário", no samba não seria diferente. Mas as coisas mudaram e recentemente um passista de uma escola do grupo especial no Rio de Janeiro ameaçou processar seu coordenador acusando-o de homofóbico por ter censurado seu jeito de sambar, comparando-o a uma cabrocha.
Observo uma certa carência na construção de identidades dos passistas a partir das suas próprias vivências no samba, parece haver um certo desconhecimento acerca de suas próprias representações, o que acaba propiciando métodos estranhos de transmissão deste saber. Se um passista precisa ser ensinado a sambar, ele não é um passista. A beleza do samba dançado está na originalidade. E o mais curioso é que os passistas mais expressivos afirmam que não foram ensinados, não receberam aulas nem qualquer instrução, aprenderam por convívio e observação.
Prevalece um antigo ditado popular: "Faça o que eu digo mas não faça o que eu faço"
E você, o que pensa sobre isso?

quarta-feira, 13 de março de 2013

A VELHA GUARDA DOS PASSISTAS



A partir de uma inquietação pessoal, andei pensando sobre o lugar dos passistas veteranos nas escolas de samba. Atualmente observa-se um boom no meio deste segmento, onde se percebe uma onda de destaque e valorização muito bem vinda. Os debates e propostas estão surgindo num movimento dentro do próprio segmento, o que o reveste de uma maior credibilidade e legitimidade.    

Termos como “malandros” “bambas”, “cabrochas”, referências do passado (anos 20/30), são agora, comumente utilizados, embora antes tivessem um caráter personalíssimo, ou seja, era uma característica do indivíduo sambista, ou seja, um sujeito que dominasse a arte do samba, poderia sem constrangimentos, desfilar em várias escolas, porque seu prazer estava na arte de sambar, muito embora isso pouco acontecesse em razão da distância entre as primeiras escolas e a predominância do espírito de grupo. Mais tarde, com a organização das escolas de samba (1950), o elemento agora chamado “passista” passou a agrupar-se e  identificar-se com uma agremiação específica.
         
O passista sempre esteve, de alguma forma, “assombrado” por alguma ameaça. Ora é o temor de que as mudanças no carnaval sejam tamanhas que os elimine de vez dos desfiles; ora um “corte” perpetrado por algum dirigente num determinado ano, em fim, o passista vive no dilema entre o SER e o ESTAR.
        
Alguém é passista hoje e deixa de sê-lo amanhã? No trabalho de dissertação de mestrado apresentado na Universidade Federal do Rio de Janeiro por Simone Sayuri Takahashi Toji (SAMBA NO PÉ E NA VIDA: CARNAVAL E GINGA DE PASSISTAS DA ESCOLA DE SAMBA ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA) ela afirma: “[...] A carreira de passista depende totalmente da sua performance, e esta por sua vez é dependente do vigor físico do indivíduo. Por isso, é uma carreira que tende a atingir seu maior desenvolvimento durante a juventude e a maturidade física, declinando conforme o intenso envelhecimento da pessoa [...] Assim como os esportistas, a carreira do passista se escora grandemente nas suas habilidades e aparência físicas e, com o avançar da idade, vai se tornando cada vez menos recompensadora. Conforme conversamos com diversos deles, a carreira pode terminar por volta dos 40 e 50 anos, “até quando as pernas aguentarem” ou “o corpo segurar o biquíni”. A partir daí, os passistas, tanto femininos quanto masculinos, passam a ocupar posições que lhes exige menos fôlego do corpo”.
          
Alguns, após essa mudança de status, ou seja, quando deixam a ala de passistas, procuram buscar outros espaços dentro da escola de samba, seja numa ala de comunidade, seja na diretoria, ou até mesmo se afastam por completo, guardando na memória histórias de momentos mais ou menos célebres de sua trajetória.
         
Acreditamos, entretanto, que as coisas podem e devem ser diferentes. O que determina e qualifica um passista é, antes de mais nada, sua aptidão e domínio sobre a dança do samba. Nesse sentido, crianças, jovens ou idosos podem sambar e consequentemente serem passistas, independentemente de suas idades. Temos alguns exemplos tais como “Vitamina” (Salgueiro - 80), Celso (Mangueira – 57), Jofre (Mangueira – 60), Aldione (Vila Isabel- 57), Valci (Portela – 44), Nilce Fran (Portela – 48), Indio (Mangueira -50) . Vale destacar, que pelo menos dois destes – Valci Pelé e Nilce Fran foram premiados com o Estandarte de Ouro, premio concedido pelo Jornal O Globo, como os melhores passistas do Carnaval 2012.
          
O problema que persiste é que apenas alguns poucos passistas conseguem continuar desenvolvendo seu ofício com prestígio e dignidade, principalmente as mulheres, bastante prejudicadas pelos figurinos de fantasias e uniformes de ala cada vez mais infanto juvenis.
          
Ano passado havia na mangueira uma ala para casais e que caiu como uma luva nas mãos de “ex” passistas. O figurino reunia a leveza necessária e a estética adequada para um casal de passistas adultos, mas o figurino não objetivava vestir passistas, foi apenas uma alegre coincidência que favoreceu a muitos “ex-passistas”. 
          
Acreditamos que cada coordenador de ala deveria buscar junto a direção de carnaval, reintegrar antigos passistas que possam e queiram ainda desfilar sambando, conscientizando diretores e carnavalescos da necessidade de se elaborar figurinos adequados e com isso valorizar aqueles que tanta dedicação prestaram à escola e ao samba. São os mais velhos que guardam o passado da escola.
          
Em 2012 inauguraram-se as comemorações do Dia do Passista com palestras e shows no SESC Madureira. Em 2013, organizou-se um grande e belíssimo desfile na Marques de Sapucaí que reuniu alas de passistas de diferentes escolas e grupos. Muitas homenagens mais que merecidas, mas a maior premiação que um passista pode ganhar é ter seu espaço assegurado no desfile de sua escola. E se as escolas desfilam atualmente com uma média de 4.000 componentes, certamente haverá lugar para 20 ou 30 passistas que o tempo não fez parar.

Silvia Borges

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

ELEIÇÕES NA MANGUEIRA

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Aconteceu ontem a noite, no Clube dos Suboficiais e Sargentos do Exército, a segunda reunião do comitê eleitoral do candidato Chiquinho à presidência da Mangueira, cuja eleição, sob judice, se realizará em abril próximo.

O clima era tipicamente mangueirense: discursos inflamados, emocionados, lágrimas, a entrada triunfal da bandeira da escola conduzida por baluartes importantes, como Nelson Sargento, o hino cantado por todo eleitorado foi o ponto alto da reunião.

Chiquinho é um nome de coalizão, um nome que reúne,  que congrega, até pq não teve a imagem desgastada desde o início da disputa. Importante também é o apoio que recebe de antigos presidentes com gestões bem sucedidas, como Elmo e Alvinho.

O que se percebe é o anseio por uma mangueira mais família. Uma quadra mais cuidada. Espera-se com a eleição de Chiquinho, a recuperação da imagem da mangueira como uma escola apresentável, patrocinável, que investe em projetos sociais, promove a cidadania através do samba, do esporte, da educação e do trabalho.

Uma escola de samba como a Mangueira, que bem ou mal, promove eleições democráticas, acaba por enriquecer com gestões diversas. Creio que cada Presidente, de alguma forma, colaborou com a estória da Mangueira. Cada gestão destacou potenciais diversos dentro de uma mesma Mangueira. E novas eleições servem justamente prá isso: prá abandonarmos o que não deu muito certo e recuperarmos o que de importante ficou prá trás, aperfeiçoando sempre!








segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

TRÁFICO DE PESSOAS



TRÁFICO DE PESSOAS: ASPECTOS NORMATIVOS E FINALÍSTICOS

Monografia produzida para o curso de pós-graduação lato senso da Universidade Cândido Mendes, do Instituto A Vez do Mestre, como requisito parcial para a obtenção do título de pós graduada em Direito Internacional e Direitos Humanos.


“A miséria oferece e a sociedade compra”
(Victor Hugo – Os miseráveis)


SUMÁRIO




INTRODUÇAO                                                                                                     

  • CAPÍTULO 1 - O TRÁFICO DE PESSOAS

1.1  .Conceito
1.2  .Breve Histórico

  • CAPÍTULO 2 – PRINCIPAIS INSTRUMENTOS LEGAIS PÁTRIOS E INTERNACIONAIS

2.1 .Código Penal
2.2 .Protocolo de Palermo
2.3 .Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores
2.4 .Estatuto do Estrangeiro
2.5 .Estatuto da Criança e do Adolescente
2.6 .Remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento

  • CAPÍTULO 3 – VARIAÇÕES FINALÍSTICAS

3.1. Exploração Sexual
3.2. Exploração da mão-de-obra
3.3 .Tráfico de Órgãos e de partes do corpo

  • CAPÍTULO 4 – CONCLUSÃO

  • CAPÍTULO 5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

INTRODUÇAO


         Aumenta a cada dia o desejo das pessoas de se deslocarem de um país para outro, buscando melhores oportunidades. Num outro trabalho em que o objeto de estudo foi a Extradição, apontou-se diversas razões que motivam as pessoas a migrarem: desastres naturais, a rigidez climática de alguns lugares, a fome, perseguições étnicas, religiosas, as guerras e a pobreza em geral.
         O avanço da globalização, a busca por novos mercados consumidores acabou por incentivar cada vez mais a circulação de gentes, embora, atualmente, muitos países dificultem o acesso a seus territórios por conta das ofensivas terroristas.
         Neste contexto, e a despeito de toda dificuldade imposta pelos Estados onde estrangeiros são personas non gratas um crime gravíssimo acontece: o comércio ilícito de pessoas ou apenas de parte de seus corpos.
         Para o cidadão comum tudo parece não passar de mais uma lenda urbana, mas na verdade, milhares de pessoas estão sendo aliciadas, transportadas, vendidas, exploradas, escravizadas, mutiladas, como se fossem mercadorias.
         Acredita-se que o Tráfico de Pessoas seja o comércio ilícito que mais cresceu nos últimos tempos, perdendo em rentabilidades apenas para o tráfico de armas e drogas, embora alguns acreditem que atualmente, tráfico de pessoas já tenha superado o tráfico de drogas. [1]  
         Atualmente, as pessoas se deslocam como nunca se viu antes. Em 2004, o mundo registrou 175 milhões de imigrantes internacionais, o que equivale a 3% da humanidade. No entanto, pelo menos outros 90 milhões talvez não estejam sendo documentados. Um número ainda maior participou de migrações internas, 150 milhões apenas na China, que atraídos pelas cidades e zonas industriais em expansão, abandonaram regiões do interior. Outros 20 milhões de refugiados ou exilados complementam esse quadro. Os EUA e a Europa continuam sendo o destino preferencial.[2]
         O presente trabalho pretende trazer à luz, por hora, de forma mais abrangente, a temática do tráfico de pessoas, prometendo, num outro momento, aprofundar e enfatizar a comercialização de órgãos ou de “partes do corpo”, como preferem alguns estudiosos. O fenômeno pode ser analisado sob diversos aspectos, especialmente o econômico, social, o antropológico e o criminal. Pretende também pesquisar os instrumentos legais pátrios e internacionais existentes que objetivam combater tal prática.
         Todo aparato sigiloso, a compra e venda de órgãos humanos existe silente, sendo apontada como grave violação aos direitos humanos perpetrada na calada das noites, nos prostíbulos, nas fazendas, nas fábricas e nos containeres mundo afora.
         A sociedade ainda desconhece a gravidade que envolve o tema, muitos o tratam como lenda urbana, mas a verdade é que muitos têm se beneficiado financeiramente por explorarem a vida e a morte de terceiros.
         Se o curso que ora se conclui é sobre Direito Internacional com ênfase em Direitos Humanos, está-se diante de um grande desafio: estudar um fato que sob o olhar jurídico-criminal, configura-se como uma das maiores violências que um ser humano pode fazer com outro: “coisificá-lo”.
         Inicialmente, apresentam-se alguns poucos conceitos existentes sobre tema e sua evolução histórica, contextualizando a globalização e os movimentos migratórios.
         No segundo capítulo, destacamos alguns instrumentos legais pátrios e internacionais, tais como o Código Penal Brasileiro, comentando as recentes modificações visando aumentar o alcance da proteção; o Estatuto da Criança e do Adolescente; o Estatuto do Estrangeiro; a Consolidação das Leis Trabalhistas; as Convenções da Organização Internacional do Trabalho; A lei que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento; Tratado de Paris, que se ocupou primeiro do tráfico de negros; A Convenção de Genebra, de 1956, que ampliou o Tratado de Paris; o Acordo para Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, de 1904, depois convolado em Convenção; a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, de 1921 em Genebra; a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores, de 1933, e por último a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio, de 1949; e finalmente o Protocolo de Palermo, de 2000.
         No terceiro e último capítulo destacamos as principais vertentes do tráfico de pessoas, ou seja, algumas de suas muitas finalidades, tais como a exploração sexual, a exploração de mão-de-obra, a venda de crianças para serem adotadas ilegalmente ou servirem às redes de prostituição infantil e por fim, o tráfico de órgãos ou de partes do corpo para transplantes ou rituais de feitiçaria, demonstrando a vulnerabilidade das vítimas.  
         Comercializar pessoas pode ser cruel para alguns, mas extremamente lucrativo e compensatório para outros.
         Por fim, espera-se que trabalho possa contribuir para estimular a discussão e o fluxo de informação acerca do tema entre os atuantes nas ciências jurídicas e sociais, assim também como entre os cidadãos comuns, desejosos de um mundo mais digno.

1- O TRÁFICO DE PESSOAS
1.1        Conceito

          Em 1994, a Resolução da Assembléia Geral da ONU assim definiu o tráfico de pessoas: 
movimento ilícito ou clandestino de pessoas através das fronteiras nacionais e internacionais, principalmente de países em desenvolvimento e de alguns países com economia em transição, com o fim de forçar mulheres e crianças a situações de opressão e exploração sexual ou econômica, em benefício de proxenetas, traficantes e organizações criminosas, assim como outras atividades ilícitas relacionadas com o tráfico de mulheres, por exemplo, o trabalho doméstico forçado, os casamentos falsos, os empregos clandestinos e as adoções fraudulentas [3]

         O conceito do tráfico de pessoas que emana do Protocolo de Palermo, principal documento internacional global contra a criminalidade organizada transnacional, está ligado à idéia de exploração: 

A expressão ‘tráfico de pessoas’ significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos [4]

          Para o Ministério da Justiça Brasileiro, Tráfico de Pessoas é causa e conseqüência de violação de direitos humanos, porque explora a pessoa humana, degrada sua dignidade e limita sua liberdade de ir e vir.
          A doutrina não preocupou-se em construir conceitos acerca do tráfico de pessoas e os existentes estão calcados da  práxis.
          Moisés Naím nos traz uma diferenciação entre contrabando humano e trafico humano:

Os termos contrabando humano e tráfico humano designam, em princípio, duas atividades diferentes. No contrabando humano, o imigrante paga ao contrabandista pela travessia. No caso do tráfico, o traficante decide, coage o imigrante e o vende como mão de obra. [5]

          Dolores Cortes[6], da Organização Internacional para as Migrações (OIM), discorreu sobre “A importância da conceitualização do problema: mecanismos legais disponíveis contra o tráfico de pessoas”.  A representante da OIM indicou que é extremamente importante conceitualizar o tráfico de pessoas que, de acordo com a OIM, trata-se de uma forma de migração irregular que implica a violação dos direitos humanos do migrante.  Afirmou que o tráfico é um crime que faz dois milhões de vítimas por ano, conforme dados da OIM.  Acrescentou que, em conformidade com o Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (Protocolo de Palermo), os elementos que definem o tráfico de pessoas incluem atividades, meios e fins.  As atividades são de captação, acolhida, traslado e recebimento, e os meios incluem ameaças, força, fraude, coação, engano e abuso.  Por outro lado, afirmou que o resultado das atividades e o uso dos meios conduzem aos fins que se traduzem pela exploração, que se manifesta, entre outros, pela exploração sexual, os trabalhos e serviços forçados, a escravidão, a servidão, a extração de órgãos, etc.


1.2        Breve Histórico

          O homem como objeto de negociação, vem sendo explorado desde a Antiguidade, principalmente no período de Alexandre Magno. [7] Atualmente o Tráfico de Pessoas está ligado à globalização, às facilidades tecnológicas que impulsionam o comércio e a circulação de pessoas.
          O Brasil, à época da colonização portuguesa, permitiu o tráfico de pessoas, negros oriundos do continente africano, durante um longo período que aqui chegaram para trabalharem no cultivo da cana de açúcar, do café, do cacau. Os homens, no trabalho da lavoura; as mulheres, geralmente levadas ao trabalho doméstico e à satisfação sexual dos homens da família. [8]
           Ao longo de quinhentos anos, o Brasil construiu uma cultura hostil ao tráfico de seres humanos, visto que sempre atuou como importador ou exportador de seres humanos, em especial mulheres.
          Thalita Carneiro Ary[9] nos informa um pouco mais acerca da origem do Tráfico de Pessoas

O tráfico de seres humanos é uma prática muito antiga, existindo desde a Antiguidade Clássica, primeiramente na Grécia e posteriormente em Roma. Nesse período o tráfico se dava com o objetivo de se obter prisioneiros de guerra para serem utilizados como escravo. Saliente-se que o trabalho escravo era respaldado pelos pensadores da época, apontando Aristóteles que haviam homens escravos por natureza, pois existiam indivíduos tão inferiores que estariam destinados a empregar suas forças corporais e que nada de melhor poderiam fazer. Apenas Durante o período renascentista, por volta do século XIV e XVII, o tráfico ganhou feição de prática comercial. Com o advento da colonização européia nas Américas, surge uma nova forma de tráfico de seres humanos: o tráfico negreiro, o qual se configura como um sistema comercial que recrutava mediante força e contra seus desígnios, mão de obra de determinada sociedade transportando-a a outra de outra cultura completamente diferente. Africanos passaram a ser utilizados para suprir a carência de mão de obra nas colônias de exploração européia, perdurando essa exploração humana por séculos. A estruturação econômica e política dessas sociedades estavam alicerçadas na exploração dessa espécie de força de trabalho, configurando-se condição essencial e indispensável para sua sobrevivência. Dessa forma o trabalho escravo movimentou economias e levantou impérios, construiu grandes cidades, impulsionou o comércio.
No século XIX os esforços se pautaram na eliminação dessa espécie de tráfico que possuía como finalidade específica a escravidão, adquirindo posteriormente, um enfoque diferente. Assim, dentro do escopo do processo de internacionalização da mão de obra no período de globalização do capitalismo, em fins do século XIX e início do séc. XX surge uma nova preocupação referente às pessoas traficadas: a questão do tráfico de escravas brancas objetivando a prostituição.  



2- PRINCIPAIS INSTRUMENTOS LEGAIS PÁTRIOS E INTERNACIONAIS
          
          A legislação internacional, como já informamos, se ocupou primeiro do tráfico de negros que sustentaram os regimes escravocratas, estendendo-se depois às mulheres brancas. Em 1904 é firmado em Paris o Acordo para a Repressão de Tráfico de Mulheres Brancas, no ano seguinte convolado em Convenção.
          Assim desenvolveu-se a legislação coercitiva e de combate à exploração sexual:

  • 1904 – Acordo para repressão ao tráfico de mulheres brancas
  • 1910 – Convenção Internacional para repressão ao tráfico de mulheres brancas
  • 1921 – Convenção Internacional para repressão ao tráfico de mulheres e crianças
  • 1933 – Convenção par repressão ao tráfico de mulheres maiores
  • 1949 – Convenção e Protocolo final para repressão ao tráfico de pessoas e do lenocínio.

         A partir de 1910, os instrumentos normativos internacionais passaram a tratar o tráfico para fins de exploração sexual como crime punível com privação de liberdade e passível de Extradição.  Houve uma ampliação gradual da proteção à todas as mulheres, incluindo adolescentes e crianças.
         A convenção de 1949 é um marco divisório nos aspectos legais, pois incorporou valores como a dignidade da pessoa humana, o bem estar da família e da coletividade, abrangendo o conteúdo da norma, apontando como possível vítima qualquer pessoa, independentemente de idade ou gênero.
          O Tribunal Penal Internacional prevê em seu estatuto os crimes de escravidão sexual e de prostituição forçada como sendo crimes contra a humanidade e de guerra.
          Em 2000, após inúmeros debates, a ONU aprovou o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, o “Protocolo de Palermo”; importante documento que ampliou o conceito da matéria para todo tipo de exploração, seja ela sexual, do trabalho ou para remoção de órgãos para diversos fins. 
          Na proteção ao trabalho, destaca-se a Convenção 29 e 105 da OIT.  A primeira (Convenção sobre Trabalho Forçado) dispõe sobre a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas. Admite algumas exceções de trabalho obrigatório, tais como o serviço militar, o trabalho penitenciário adequadamente supervisionado e o trabalho obrigatório em situações de emergência, como guerras, incêndios, terremotos, entre outros. A segunda (Convenção sobre Abolição do Trabalho Forçado) trata da proibição do uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coerção ou de educação política; castigo por expressão de opiniões políticas ou ideológicas; medida disciplinar no trabalho, punição por participação em greves; como medida de discriminação. Há também a declaração de Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho e seu Seguimento, de 1998.
          No Brasil, visando coibir o tráfico de pessoas de maneira abrangente, os principais instrumentos legais são os seguintes: Lei 2.848/40, art. 231 e 231-A; 245 (Código Penal); Lei 6.815/80, arts. 80 e 125 (Estatuto do Estrangeiro); Lei 8.069/90, arts. 238 e 239 (Estatuto da Criança e do Adolescente); Lei 9.434/97, arts. 14 e seguintes (Lei dos Transplantes); Decreto 5.948/2006 que aprova a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP).

2.1. O Código Penal

          O legislador, no Código Penal no Título VI, Capítulo V, artigo 231, descreve o tipo penal e determina a pena para os que praticam Tráfico Internacional de Pessoas e no 231 A, abarca o tráfico interno, no âmbito territorial brasileiro.
          O tipo penal descrito do Art. 231 é “Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro”. Já no 231-A o texto refere-se à mesma prática, só que em território nacional.
          O professor e Procurador de Justiça Rogério Greco,[10] faz o seguinte comentário acerca do assunto:

Temos tomado conhecimento com uma freqüência assustadora, pelos meios de comunicação de massa, sobre o grande número, principalmente de mulheres, que parte do Brasil para o exterior, especialmente para os países da Europa, iludidas com promessas de trabalho, ou até mesmo, com propostas de casamento para na verdade, exercerem a prostituição. O contrário também ocorre, ou seja, mulheres estrangeiras aliciadas para se prostituírem no Brasil, mesmo que em menor freqüência. A Lei 11.106 de 28 de março de 2005 modificou a redação original do art. 231 do CP a começar pela sua rubrica. Inicialmente, a previsão legal dizia respeito tão somente ao tráfico de mulheres, sendo que o tipo penal indicava como sujeito passivo. Depois da mencionada modificação legislativa, a infração penal em estudo passou a ser chamada de tráfico internacional de pessoas significando que tanto mulheres como homens podem figurar como sujeitos passivos do delito sub examen. Há uma preocupação em nível internacional no que diz respeito ao tráfico de pessoas com o fim de serem exploradas sexualmente, mediante o exercício da prostituição. Em 21 de março de 1950, foi concluída, em Nova York, a Convenção das Nações Unidas destinadas ä repressão do tráfico de pessoas e do lenocínio, assinada pelo Brasil em 05 de outubro de 1951 e aprovada pelo DECRETO Legislativo n. 06, de 1958, tendo sido depositado o instrumento de ratificação na ONU em 12 de setembro de 1958.

           Outro importante doutrinador penalista, o Professor Guilherme de Souza Nucci [11] também manifestou-se sobre o trafico de pessoas em território nacional:  
O novo tipo penal, introduzido pela Lei 11.106/2005, destina-se a coibir o tráfico de pessoas, dentro do território nacional, com a finalidade do exercício da prostituição. É sabido que, atualmente, o turismo sexual com a meta de conseguir relacionamento sexual remunerado, tem sido preocupação de muitas autoridades, em especial quando envolvem adolescentes e até mesmo crianças, motivo pela qual se toma medidas mais severas para impedir a facilitação da prostituição, inclusive de adultos, levando e trazendo pessoas e proporcionando, para tanto, hospedagem e abrigo.


2.2. O Protocolo de Palermo

          O Protocolo de Palermo (Protocolo Adicional á Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo á prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças) foi um instrumento legal de abrangência internacional destinado a prevenir combater o tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças. Exige dos países que dele fazem parte, medidas preventivas, punitivas para os traficantes e de proteção as vítimas, resguardando seus direitos fundamentais, internacionalmente reconhecidos.
          A elaboração do documento, que completa a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional foi também motivada pela verificação de não haver até então nenhum instrumento com um caráter tão ampliativo sobre tal conduta criminosa.
          O Protocolo também define, no art. 3, a expressão tráfico de pessoas: significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo á ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, a fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou a situação de vulnerabilidade ou á entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares á escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos, práticas odiosas das quais discorremos mais a frente.

2.3.  Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores

         A Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores surgiu para dar maior proteção à criança e ao adolescente através de medidas mais abrangentes, assim como ao reconhecimento do Princípio de Proteção Integral e efetiva do menor e preocupado com o crescente número de crianças vitimadas pelo tráfico internacional de menores.       
        Visa proteger os direitos fundamentais e os interesses superiores dos menores, bem como a regulamentação de seus aspectos civis e penais.

2.4. Estatuto do Estrangeiro c/c Constituição Federal

          O Estatuto do Estrangeiro em seu art. 125 prevê como conduta criminosa o ato de introduzir clandestinamente o estrangeiro no Brasil e a competência processual e punitiva cabe a Justiça Federal.

2.5. Estatuto da Criança e do Adolescente

          O ECA reprime a conduta dos responsáveis pelo menor com a seguinte redação do art. 238:
Art. 238. Prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceira, mediante paga ou recompensa.
Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.
Parágrafo único – Incide nas mesmas penas quem oferece ou efetiva a paga ou recompensa.           

          Assim também como àqueles que enviam os menores para fora do Brasil, na previsão do art. 239 da mesma Lei:

Art. 239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro.
Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 8 (oito) anos, além da pena
2.6. Lei que dispõe sobre a Remoção de Órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento (Lei 9434/97).
          Contudo, existem pessoas que diante do quadro grave de saúde em que se encontram ou movidos por interesses financeiros, acabam por violar as normas previstas na Lei n.º 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, ora indo de encontro com o previsto no artigo 15 (comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano), ora contrariando o disposto no artigo 14 (Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei), dentre outras previstas na lei de regência da matéria.
3- VARIAÇOES FINALÍSTICAS

        Moisés Naím [12] comenta sobre o quantitativo estimado de pessoas vítimas deste crime, estima que cerca de 30 milhões de mulheres e crianças foram vítimas de tráfico no Sudeste Asiático nos últimos 10 anos. Afirma que o tráfico através de fronteiras, que é apenas uma parte de todo esse quadro, transporta aproximadamente de 700 mil a 2 milhões de pessoas por ano, sem contar o comércio interno.
          Em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo em 2006, estimou-se que o tráfico de seres humanos tenha superado o trafico de armas em termos de lucratividade ao movimentar US$ 32 bilhões por ano e explorar mais 2,5 milhões de pessoas Não se pode precisar o quantitativo por se tratar de comércio ilícito, mas os governos, organizações internacionais e grupos ativistas que rastreiam esses fluxos concordam que o número de pessoas que cruzam ilegalmente as fronteiras em condições coercitivas, não tem precedentes na história.
          Segundo a ONU[13], quando o tráfico e o contrabando de seres humanos aparecem combinados, o quadro é ainda mais preocupante. China e México se destacam nessa prática odiosa. O primeiro pelo elevado índice populacional que gera uma mão de obra extremamente barata e a política severa de controle de natalidade, que provocam a venda de crianças para dentro e fora do país, o segundo por desejar a realização financeira no país rico e fronteiriço.
          Ambos são aspectos de uma vasta nova indústria que prospera graças ás aspirações daqueles que buscam uma vida melhor em algum lugar e aos obstáculos que os governos colocam no seu caminho.
 
3.1. Exploração Sexual   
          
          No tráfico para exploração sexual a vítima preferencial é a mulher, embora muitos homens estejam sendo atualmente aliciados. No Brasil, Segundo dados do Ministério da Justiça (PESTRAF- Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins comercias no Brasil)[14] os recrutados são pobres, com idades entre 18 e 30 anos, solteiros, com pouca escolaridade e sem profissão definida. As principais formas de aliciamento são através de agências de modelos, de viagens e empregos, sites de relacionamentos, restaurante, boates e hotéis Os agentes criminosos diretos são geralmente brasileiros com atividade profissional ligada ao turismo e ao entretenimento.
         Os Estados que muito se destacam são Pará, Goiás, Roraima, Bahia, Natal, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.  .
        Ao chegarem ao exterior têm seus passaportes – muitas vezes falsos- apreendidos e passam a viverem em condições análogas a de escravos, em condições inumanas, existindo apenas para garantirem a lucratividade dos que as exploram. [15]
          Países como a China, Rússia, Tailândia, Japão, Filipinas, Colômbia e Camboja, se destacam nesta prática degradante. Com a unificação das Europas, centenas ou milhares de adolescentes foram exportadas da Rússia, Ucrânia, Moldávia e Romênia para serem exploradas sexualmente em cidades da antes Europa ocidental e do Japão. Em cidades como Londres (Inglaterra) e Lyon (França) a mudança resultante da chegada de jovens estrangeiras para atuarem no mercado do sexo foi tão expressiva, que prostitutas locais organizaram movimentos ativistas para protestar contra a tomada do mercado pelas mulheres oriundas da Europa Oriental, trazendo àquelas, prejuízos insondáveis.
            A situação é gravíssima. Os recrutadores ganham em torno de 500 dólares por vítima que é convencida através de promessas falsas de virem a tornar-se modelos, secretárias ou balconistas em um país rico. Depois de cruzarem a fronteira são “armazenadas” em depósitos e condicionadas à exploração sexual pelo uso de drogas, ameaças de morte, espancamentos e seguidos estupros. Uma mulher poderá passar anos como escrava sexual, sujeita a um tratamento desumano até seu corpo se exaurir ou o traficante decidir que ela quitou sua “dívida”. O mesmo acontece no Japão, onde as meninas são geralmente oriundas do Brasil, Equador, Colômbia ou Tailândia, onde as meninas são geralmente vendidas pelos próprios pais.
          Um relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) [16] revelou que aproximadamente 70.000 mulheres são vítimas de tráfico sexual para a Europa Ocidental anualmente. De acordo com o documento O Tráfico de Pessoas para a Europa para Exploração Sexual, há atualmente cerca de 140.000 mulheres obrigadas a trabalhar no mercado do sexo na região.
          A ONU[17] estima que essas “escravas sexuais” façam em torno de 50 milhões de programas ao ano, a um custo médio de 50 euros por cliente (aproximadamente 109 reais), movimentando um total de 2,5 bilhões de euros (aproximadamente 5,47 bilhões de reais). Segundo o documento, a região dos Bálcãs é a principal origem das mulheres traficadas para a Europa Ocidental (32% do total), seguida dos países do ex-bloco soviético (19%). As sul-americanas representam 13% dessas mulheres e têm como principais destinos Espanha, Itália, Portugal, França, Holanda, Alemanha, Áustria e Suíça. A organização percebe ainda um aumento no número de mulheres brasileiras traficadas para a Europa. A maioria das vítimas são originárias de regiões pobres no norte do país, principalmente nos estados do Amazonas, Pará, Roraima e Amapá.
          O tráfico para fins sexuais também é comum nos EUA. Em 1998 escravas sexuais mexicanas foram descobertas na Flórida. Um relatório do governo, em 1999, assinalou que as autoridades da imigração identificaram 256 bordéis em 26 cidades que aparentemente eram abastecidas com vítimas do tráfico. [18]
          As crianças não são poupadas nesse comércio ilegal. São vendidas anualmente cerca de 120 mil crianças da Europa Oriental para a Ocidental, avalia o UNICEF.  Só uma estreita cooperação entre estes Estados poderia evitar o tráfico humano. A ONG Terre des Hommes confirma que mais de um milhão de crianças são vendidas anualmente. Muitas são forçadas à prostituição e sofrem abusos sexuais e violência. A maioria é levada para longe de sua pátria e muitas são aprisionadas e maltratadas.
        As crianças vendidas para a Alemanha são em muitos casos exploradas sexualmente e forçadas a atividades criminosas, como roubar ou vender drogas.
         Naím[19] nos informa que num vilarejo chinês de Langle, é facil reconhecer as casas das famílias cujos filhos são do sexo feminino:
Essas famílias têm a casas com telhas e ar condicionado, enquanto as famílias que não têm meninas são pobres, e suas crianças ainda caçam com arco e flecha nas colinas. A principal razão para que as casas com meninas sejam mais prósperas é que elas não estão mais lá.
          Nas grandes cidades da Europa, cresce o número de trombadinhas – crianças trazidas do Leste Europeu especialmente para “bater carteiras”. Outro ramo de trabalho dos traficantes é a adoção ilegal. Como mercadorias, crianças são oferecidas em catálogos na internet. As preferidas para adoção são brancas, saudáveis e recém-nascidas.
          Rússia e a Albânia têm se destacado neste infeliz mercado e a corrupção dificulta o combate ao tráfico humano por parte da polícia, que em muitos países também é corrupta. Além do mais, os criminosos contam com os meios mais modernos de comunicação. A internet é uma plataforma confortável para oferecerem seus produtos além fronteiras. Segundo o relatório da UNODC, a pornografia infantil gera para os criminosos aproximadamente US$ 250 milhões, com cerca de 50 mil novas imagens publicadas todos os anos na rede.     
         A quarta Conferência Mundial sobre mulher, em Beijiin (1995) acolheu o conceito de prostituição forçada como uma forma de violência, permitindo, conseqüentemente o entendimento de que a prostituição exercida livremente não representa violação aos direitos humanos, alterando assim um dos paradigmas da Convenção de 1949. Entretanto é importante ressaltar que o entendimento prevalente é no sentido de que configurada a exploração da pessoa humana, o Estado não poderá chancelar o consentimento.
         No Brasil, o cineasta Rudi Lagemann mostrou nas telas o drama da exploração sexual de crianças e adolescentes nos garimpos da Amazônia, num filme intitulado Anjos do Sol que logo em sua primeira exibição pública arrematou o prêmio do júri popular para melhor longa Ibero-Americano durante o Miami International Film Festival.

2.2 Exploração de mão-de-obra (Trabalho Escravo)

          O tráfico de pessoas muitas vezes tem como finalidade submeter pessoas ao trabalho forçado. Atinge tanto os países ricos como os pobres. É um fenômeno verdadeiramente global.  Os novos arranjos políticos e econômicos que afetaram o mundo como a queda do Muro de Berlim, o Colapso da Cortina de Ferro, a União Européia, o MERCOSUL, entre outros, trouxeram uma liberdade de locomoção jamais vista, disponibilizando potenciais trabalhadores aos países que dele necessitavam. O crescimento econômico de alguns países criou uma demanda por trabalhadores inexistentes no mercado local.
            Os empregadores fazem lobby por leis de imigração mais flexíveis, mas mesmo assim nenhum estrangeiro é recebido em qualquer lugar do mundo de braços abertos, favorecendo assim um mercado global de trabalhadores com inúmeras barreiras legais que deverão ser enfrentadas com coragem e ousadia, que muitas vezes os levam às mãos de intermediários criminosos.
          Os principais destinos costumam ser os centros urbanos dos países mais ricos – Amsterdã, Bruxelas, Londres, Nova Iorque, Roma, Sidnei, Tóquio – e as capitais de países em desenvolvimento e em transição. Mas a movimentação de pessoas traficadas é muito complexa e variada. Países tão diferentes como Albânia, Hungria, Nigéria e Tailândia podem funcionar como pontos de origem, de destinação e de trânsito ao mesmo tempo.
          Trabalhadores domésticos, operários de fábricas e, sobretudo, os que trabalham no setor informal, podem tornar-se vítimas desse fenômeno. Embora sua causa principal esteja em fatores econômicos, a luta contra o tráfico exigirá uma gama de instrumentos. O tráfico de seres humanos é um ultraje moral, mas as sanções penais que lhe são impostas costumam ser menos rigorosas que as do tráfico de drogas. [20]  
          O tráfico de pessoas em sua forma mais simples envolve a movimentação de pessoas para a execução de um trabalho e mais provavelmente para engajá-las em atividades ou empregos ilegais a serem exercidos em condições de trabalho que contrariam normas estabelecidas. Requer um agente, recrutador ou transportador, que, com toda probabilidade, tirará vantagens dessa intervenção. A coerção pode não ser evidente no início do processo ou no ciclo do tráfico. A pessoa pode entrar em acordo com o agente recrutador, de uma maneira aparentemente voluntária, embora muitas vezes sem ter recebido informação completa. Mas no lugar de destinação, as condições costumam envolver coerções, inclusive restrições físicas à liberdade de movimento, abuso, violência e fraude, muitas vezes na forma de não pagamento de salários prometidos. As vítimas se vêem em geral envolvidas em servidão por dívida e em outras condições análogas à escravidão.
          De fato, grande parte do tráfico de pessoas para o trabalho pode ser considerado servidão por dívida (truck system). Não se trata aqui de trabalho em regime de servidão, derivada da tradicional servidão na agricultura, e que passa de geração em geração. A servidão por dívida pode ser de duração muito mais curta. Sua principal motivação é tirar proveito por diversos métodos, que vão desde a prestação de serviços ilícitos – como a falsificação de documentos – ao uso criminoso e direto da força.
          Benjamin Skinner [21] revela dados alarmantes acerca da exploração do trabalho no mundo:

  • Existem mais de 300 tratados internacionais que visam coibir o trabalho forçado.
  • Existem em torno de 12,3 e 27 milhões de escravos atualmente no mundo.
  • Há mais escravos hoje do que em qualquer outro momento da humanidade
  • A Ásia e a Índia possuem mais escravos que todo o resto do mundo.
  • O Haiti tem em torno de 300 crianças escravas.
  • Um escravo pode custar entre 45 e 2 mil dólares.

          No Brasil, em 1995, num pronunciamento, o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso assumiu a existência do trabalho escravo no Brasil. A partir de então foram criadas estruturas governamentais para o combate a esse crime, com destaque para o Grupo Executivo para o Combate ao Trabalho Escravo (Gertraf) e o Grupo Especial de Fiscalização Móvel.
          Em 2003, o Brasil lançou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo e criou a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).
          Em março de 2004, reconheceu na Organização das Nações Unidas a existência de pelo menos 25 mil pessoas reduzidas à condição de escravos no país.
          De 1995 até agosto de 2009, cerca de 35 mil pessoas foram libertadas em ações dos grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. As ações fiscais demonstram que quem escraviza no Brasil não são proprietários desinformados, escondidos em propriedades atrasadas e arcaicas. Pelo contrário, são grandes latifundiários, que produzem com alta tecnologia para o grande mercado consumidor interno ou para o mercado internacional.[22] Não raro, nas fazendas são identificados campos de pouso de aviões dos fazendeiros. O gado recebe tratamento de primeira: rações balanceadas, vacinação com controle computadorizado, controle de natalidade com inseminação artificial, enquanto os trabalhadores vivem em piores condições do que as dos animais. [23]
     Segundo o Procurador do Trabalho Fábio Goulart Villela:

A “senzala moderna” é o barracão de lona incrustado em localidade inóspita e de difícil acesso, ponto final de uma viagem que se inicia com o aliciamento de trabalhadores através dos conhecidos “gatos” ou diretamente pelos tomadores de serviços em diversas regiões do Estado Brasileiro. As precárias habitações, as péssimas condições de trabalho e de higiene e a configuração da chamada “servidão por dívida” (truck system), esta última como relevante fator inibidor da liberdade de ir e vir do trabalhador, são algumas das características desta chaga social, que constitui uma mancha no processo civilizatório nacional. [24]
    

          A ONG Terre des Hommes confirma que mais de um milhão de crianças são vendidas anualmente. Como mão-de-obra barata, elas são obrigadas a tecer tapetes, a trabalhar em pedreiras ou na agricultura. Algumas são destinadas ao plantio de entorpecentes e outras tornam-se pedintes profissionais.  Na África muitas crianças são recrutadas para a atividade militar. Estima-se que existam 300 mil crianças envolvidas em conflitos armados em mais de 30 países ao redor do mundo. De acordo com o UNICEF, a maioria é de adolescentes, mas existem crianças de até sete anos nessa situação. O recrutamento de crianças em guerras se dá geralmente para as linhas de batalha, mas elas são usadas também como espiões, mensageiros ou escudos humanos.  
          Kevin Bales sociólogo britânico estudou o assunto no Brasil, Tailândia, Mauritânia, Paquistão, Índia e França, afirma que há 3 mil escravas domésticas em Paris, Londres e Zurique. As meninas são compradas ou “adotadas” em países pobres. Estima-se que há cerca de 1 milhão de meninas com menos de 18 anos, trabalhando gratuitamente nas Filipinas.

 3.3. O Tráfico de Órgãos e de partes de corpo

          De todas as modalidades e finalidades do tráfico de pessoas a mais covarde e complexa em suas razões é o tráfico de órgãos ou de partes do corpo. A comercialização ilegal de órgãos ou de partes do corpo requer uma vítima absolutamente vulnerável na quase totalidade dos casos. Boa parte dos órgãos traficados, vendidos ilegalmente para transplantes, pesquisas em universidades ou rituais religioso-supersticiosos, são captados sob fraude, torpeza ou extrema crueldade, o que explica maior relevo nesta parte da pesquisa.
         Retornemos à questão da definição e conceituação das expressões tráfico de pessoas, tráfico de órgãos, e tráfico de partes do corpo.
         Há uma importante indagação a ser respondida: A pessoa foi traficada para a remoção de uma parte do corpo ou a parte do corpo foi traficada sozinha, separada da vítima?
        O Protocolo das Nações Unidas (ONU) para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente de Mulheres e Crianças, suplemento da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Transnacional Organizado (Protocolo de Palermo, 2000), fornece a primeira definição de tráfico de pessoas acordada a nível internacional:

          O “Tráfico de pessoas” significa o recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso de força ou por quaisquer outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de decepção, do abuso de autoridade ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controlo sobre outra, para o propósito de exploração (Artigo 3).

          O parágrafo seguinte do artigo 3 do Protocolo de Palermo diz: (b) O consentimento de uma vítima de tráfico de pessoas para a intencionada exploração explicada no sub parágrafo (a) deste artigo será considerado irrelevante onde tenham sido usados quaisquer dos meios mencionados no sub parágrafo (a).

          No Protocolo de Palermo, o consentimento é irrelevante se for obtido por meios de fraude ou coerção, incluindo abuso de poder sem força física. Isto aplica-se aos casos em que indivíduos consentem, inicialmente (por exemplo para migrar ou trabalhar) mas que depois são sujeitos a exploração. Se não existe a possibilidade realista de consentimento livre e plenamente informado ou de recusa, isto contribui para ser tráfico. A questão de consentimento é irrelevante no caso de uma criança, como delineado no Artigo 3 (c) do Protocolo de Palermo:

(c) O recrutamento, transferência, abrigo ou recebimento de uma criança para fins de exploração será considerado como “tráfico de pessoas” mesmo nos casos em que não envolva qualquer dos meios mencionados no sub parágrafo (a) deste artigo.

          O tráfico de partes de corpo em si, separado da vítima, não é abordado no Protocolo de Palermo, uma vez que a remoção de órgãos nem sempre implica elementos coercitivos.
          Conclui-se que não existe uma definição de tráfico de partes de corpo reconhecida a nível internacional, dificultando assim as denúncias, a classificação penal e conseqüentemente medidas preventivas, protetivas e punitivas, assim como levantamentos estatísticos para verificação do quantitativo de ocorrências.
          Quando a pessoa está viva e o objetivo do deslocamento é a remoção de partes de corpo, o Protocolo de Palermo oferece uma definição abrangente. No entanto, uma vez que não existe uma definição para quando as partes de corpo são removidas fora do corpo da vítima, fica complicado estabelecer tal ocorrência. Parece que até agora, nenhuma organização humanitária foi capaz de fornecer uma definição de tráfico de partes de corpo. A maioria utiliza-se da constante no Protocolo de Palermo. Verifica-se que existe um pressuposto de que o tráfico de partes de corpo está apenas relacionado com transplantes e que, por conseguinte, de um modo geral, a pessoa teria de ser traficada para remoção da parte de corpo. Aparentemente, o conceito de usar partes de corpo para fins além de transplantes não foi considerado quando se avaliou a necessidade de uma definição.
          Se uma parte de corpo for usada ou vendida num local diferente do local de onde foi removida do corpo, então terá ocorrido deslocamento da parte do corpo.
          Tráfico é o ato de movimentar e comercializar algo ilegal. Uma vez que estar na posse de partes de corpo para fins comerciais é considerado ilegal, o movimento de uma parte de corpo para venda ou transação comercial é tráfico de partes de corpo. Assim, Liga Moçambicana de Direitos Humanos chegou a uma definição do que seria o tráfico de partes do corpo: “É considerado tráfico de partes de corpo o transporte ou o movimento de uma parte de corpo, quer através de uma fronteira ou dentro de um país para venda ou transação comercial”.
          O comércio de órgãos, destinados ao transplante, resulta das inovações científicas e da ampla disseminação de novos equipamentos, drogas e avanços da medicina, tornando o corpo humano um grande negócio.  
          O Brasil a despeito de ser o segundo país que mais realiza transplante bem sucedido no mundo, é também, com a Índia, dos que mais se destaca pelas estórias de doações forçadas. Na Índia recentemente, a National Geographic Explorer divulgou informações sobre a viagem de Lisa Ling à Índia para investigar relatos de comércio ilegal de órgãos de pessoas pobres daquele país. A pesquisadora visitou uma vizinhança pobre conhecida como “vila do rim”, onde muitos de seus moradores teriam vendido um de seus rins ilegalmente por algo em torno de 800 dólares.
           Em 1989, a Assembléia Mundial da Saúde, abordou a prevenção da compra e venda de órgãos humanos. Em 1991, aprovou um conjunto de princípios que enfatizam, dentre outros, a doação voluntária, a não comercialização de órgãos, a preferência pela doação de cadáveres à doação por pessoas vivas, e a preferência pela doação de geneticamente aparentado à doação por não-aparentados, ressaltou os princípios da justiça e da eqüidade, Em 2004, a mesma entidade aprovou um documento que recomenda a proteção dos grupos mais pobres e vulneráveis de práticas como o “turismo para transplante” e a venda de tecidos e órgãos.
          Por um lado se tem a enorme demanda por órgãos nos países de maior desenvolvimento econômico, por parte de pacientes que, em geral, se encontram em situação crítica de saúde; por outro, a desigual vulnerabilidade de cidadãos em situação econômica desfavorável, que geralmente vivem em países de menor desenvolvimento econômico. A junção dessas “necessidades” cria o risco de exploração da situação por indivíduos inescrupulosos, por meio do comércio de órgãos para transplante.
           No continente africano, A Liga de Direitos Humanos de Moçambique realizou uma pesquisa alarmante que demonstra a ocorrência reiterada de homicídios e lesões corporais gravíssimas, cuja finalidade principal é o tráfico de partes do corpo para fins religiosos e supersticiosos.  O estudo relata que pessoas são atacadas para que delas se retirem seus órgãos, preferencialmente os genitais. Um médico que trabalhou durante algum tempo no Distrito de Mocímboa da Praia (Província de Cabo Delgado, Moçambique), examinou, no local do crime, um corpo de uma mulher que havia sido assassinada ao cortarem-lhe a garganta e arrastarem-na a alguns metros da estrada. Depois de morta, os assassinos usaram uma “faca grande” e a “genitália externa” foi retirada com “um golpe preciso, ou provavelmente dois golpes, um de cada lado”. Não foram detidos quaisquer suspeitos. O médico acredita que o fato se deu ―provavelmente para cerimônias tradicionais, para fazer medicamentos tradicionais.
          Outro caso que também faz parte da mesma pesquisa trata do corpo de uma criança de dez anos que foi encontrada ―sem a cabeça, coração, fígado, pênis e testículos, e tinha uma incisão obliqua descendente da esquerda para a direita realizada com um objeto contundente. A criança foi brutalmente assassinada e que os ferimentos foram fatais, ―primeiro a garganta foi cortada e depois os órgãos foram removidos.          
          Questões antropológicas, culturais e até mesmo religiosas são observadas nestas práticas e há certa conformação da população a este estado de coisa. Um médico da maior associação de Médicos de Moçambique fez a seguinte declaração, bastante curiosa:

Segundo os médicos tradicionais (MT) da AMETRAMO (Associação de médicos tradicionais de Moçambique) em Nampula, um “feiticeiro é aquele que faz ou pratica o mal”, eles “agem por inveja ou por vingança criando doenças inexplicáveis às pessoas até que estas percam a vida”. A AMETRAMO chama-os de médicos tradicionais de “segunda categoria” porque “eles não aplicam os seus conhecimentos de medicina tradicional como deveriam em contraste com os de “primeira categoria que investigam e aprofundam os seus conhecimentos para fazer o bem.” Eles acrescentam que os feiticeiros podem “incitar as pessoas a cometer assassínios como meio de torná-las ricas”. Afirmaram também que “médicos tradicionais confiáveis não precisam fazer tratamentos com órgãos humanos” e que os que fazem isso são “gatunos, não são médicos tradicionais”. Os médicos tradicionais acrescentaram ainda que há tratamentos feitos por feiticeiros com partes de corpo humano que podem ser feitos por eles sem usar partes de corpo, mas sim com “a força dos espíritos e de Deus, sem ter de matar ninguém, com a ajuda das raízes.” Os membros da AMETRAMO de Nampula disseram também que a medicina tradicional não é tão desenvolvida na Beira e em Maputo, e que “é nesses sítios que estão os que fazem tratamentos com genitais humanos”. Eles defendem-se ao dizer que apesar de serem acusados de praticarem este tipos de tratamentos, que eles são “contra os feiticeiros”.    


          No Brasil, A Polícia Federal numa investigação nomeada “Operação Bisturi”, levantou casos de aliciamento e tráfico de seres humanos para remoção de rins realizados através de uma associação clandestina, que entrava em contato com habitantes da periferia de Recife, oferecendo pagamento em dinheiro em troca do órgão. Os doadores seriam remunerados com quantias que variavam de 6 a 10 mil dólares. As operações ocorriam no Hospital St.Augustine, de Durban, África do Sul, e a viagem e todos os procedimentos necessários corriam ás expensas da dita “associação”. As pessoas selecionadas como doadores eram encaminhadas, ainda em Recife, a exames pré-operatórios e, se aprovadas, recebiam documentos de viagem, passaporte e passagens, tudo providenciado pelo grupo de Gaudy. Ao retornarem, muitos dos aliciados passaram também a ser captadores de novos “doadores”, recebendo a quantia de mil dólares por voluntário captado.
          Outro caso chocante foi o da vítima Paulo Veronesi Pavesi, cujo pai imputa a médicos da Santa Casa de Misericórdia de Poços de Caldas o homicídio de seu filho.  Segundo o pai da vítima os médicos apontados na denúncia oferecida pelo Ministério Público, eram os responsáveis pela cirurgia de captação de órgãos, que haviam sido doados em função da declaração de morte cerebral da criança, porém a declaração de morte encefálica seria falsa e seu filho havia morrido na ocasião da cirurgia para a extração dos órgãos. quando da cirurgia, por isso a imputação de homicídio a esses profissionais. Além do homicídio foram também incursos no art. 14 da Lei dos Transplantes.
          A CPI do Tráfico de órgãos [25], presidida pelo Deputado Neucimar Fraga, apresenta-nos um caso digno de inspirar um filme de terror, onde uma pessoa foi morta pelo próprio médico no centro cirúrgico. Passamos a transcrever parte do relatório da CPI e parte do depoimento de uma testemunha:

“A enfermeira Rita narrou a esta CPI de maneira categórica fatos estarrecedores. Contou que estava de plantão no Hospital com outra técnica de enfermagem na noite dos fatos e recebeu por telefone o aviso de que era necessário preparar a sala de cirurgia para um paciente que sofrera traumatismo craniano, José Farias Carneiro. O paciente chegou à sala e se debatia muito, obviamente vivo. A depoente declarou surpreender-se porque ao invés de chegar um neurocirurgião na sala chegaram nefrologistas, os Drs. Pedro Henrique e Sacramento. Chegou também a médica anestesista, Dra. Lenita Bassi. As técnicas se espantaram quando uma briga com muitos gritos ocorreu na sala onde os médicos se preparavam para a cirurgia. A discussão ocorria porque a médica se recusava a anestesiar o paciente, que ainda se debatia e era seguro na mesa pelas técnicas. Rita ouviu a anestesista dizer “vou só fazer um cheirinho de anestesia porque me recuso a participar disso”. Assim fez a anestesista, ministrando ao paciente anestesia inalada, fraca. Os médicos disseram às auxiliares que seria uma nefrectomia. Elas começaram a mudar o paciente de posição (pois a nefrectomia exige o paciente em posição lateral na mesa), mas foram impedidas pelos médicos que disseram que iam retirar os rins com o paciente em decúbito dorsal. Cortaram o abdômen, lesando intestinos, e retiraram os dois rins, colocando-os em caixas apropriadas. O tempo todo o paciente gemia de dor, sentiu toda a cirurgia e ao final estava quase consciente, tentando se sentar na mesa. Os nefrologistas já iam saindo e deixaram o Dr.Fernando (residente) para suturar o paciente. Este gritou quando iam saindo: “O que eu faço? Ele não para”, enquanto junto com a depoente segurava o paciente na mesa. O Dr. Pedro Henrique Torrecilas voltou, pegou o bisturi e disse: “É tão simples!” e afundou o bisturi na região do coração, o que fez o paciente finalmente morrer. O corpo teria que ser encaminhado a algum lugar, mas ninguém mostrara documento algum, nem ficha do paciente. A ordem dada foi que o corpo fosse deixado na UTI, o que era uma ordem absurda, porque cadáveres vão para necrotérios, não para UTIs. A UTI se recusou a receber o corpo, obviamente.


4- CONCLUSAO

          O problema é grave e requer olhar abrangente sob o âmbito dos Direitos Humanos e do Direito Internacional.
          O trabalhou pretendeu trazer à luz uma violação grave à vida e a dignidade humana. Apresentou-se o que havia no âmbito jurídico normativo acerca de uma definição do Tráfico de Pessoas, quando se pode observar que há um hiato conceitual. Isto pode significar entre outras coisas, que tamanho delito ainda não entrou na agenda dos doutrinadores do Direito, o que se percebe também com o escasso número de publicações sobre o tema.
          Depois mostrou os (poucos) instrumentos legais mais expressivos dentro e fora do Brasil, onde se percebeu que ainda há muito a se produzir, emendar e modificar. As leis existentes não alcançam os fatos ilícitos já descritos no mundo da vida.
          No que se refere ao Protocolo de Palermo, cabe aos países que ratificaram o protocolo adaptarem suas legislações visando combater o comercio de pessoas focando na implementação dos instrumentos jurídicos internacionais na matéria, na prevenção do delito, na proteção e assistência às vítimas, na efetiva punição dos autores do delito de tráfico de pessoas; no intercâmbio de informação e experiências entre os países e suas agências políticas de combate e aperfeiçoamento dos registros estatísticos.
          Discorreu-se sobre algumas finalidades do Tráfico de Pessoas e observou-se que exploração sexual vitima principalmente mulheres adultas e crianças; que o trabalho forçado, infelizmente tão presente no norte e nordeste do Brasil, afeta proporcionalmente a homens, mulheres e crianças, tendo grande ocorrência nos países mais desenvolvidos do mundo, como EUA e China; e por fim, abordou-se o tráfico de órgãos para fins de transplante e feitiçaria.   
          No levantamento do material para pesquisa, verificou-se que há inúmeros outros enfoques, mas que se descritos, tornaria o trabalho um verdadeiro calhamaço, fugindo assim os limites de uma monografia lato sensu.
          Em meio à miséria, a pobreza, a fome, a guerra, ignorância, e tudo mais que a desigualdade social pode propiciar, não há limites para o lucro. 
          As autoridades ligadas ao Ministério da Justiça, especialmente nos programas de combate ao Tráfico de Pessoas, já admitiram que alguns aspectos do tráfico de pessoas ainda não estão plenamente abordados pela legislação brasileira, tais como: o tráfico de pessoas para fins de casamento forçado, de transplante de órgão, de trabalho forçado, e outras.
          Deve-se fomentar uma sensibilidade social, a fim de combater a lei do silêncio que existe em torno do tráfico humano.
          Se o que se deseja é erradicar, intimidar, inibir o tráfico de pessoas em qualquer lugar do mundo, primeiro é necessário uma maior compreensão de como se dá o fenômeno, para preparar o caminho para políticas, leis e programas de ação mais eficazes; segundo, compreender a natureza e a dimensão dos problemas, apontando quais são as rotas principais do tráfico, dentro e através de quais fronteiras e com que instituições negociam, qual é o perfil comum das pessoas traficadas, classificadas por sexo, idade, origem social, raça e etnia; terceiro, examinar as causas e os efeitos, buscando pesquisas que demonstram índices de fatores sociais e econômicos que estão por trás do aumento do tráfico de pessoas, por fim, divulgar as medidas que estão sendo adotadas por governos, interlocutores sociais, organizações internacionais e grupos religiosos.
          De certo, pode-se afirmar que mesmo no meio jurídico, pouco se conhece sobre o tráfico de pessoas. Alguns, ao ouvirem notícias, pensam tratar-se de uma “lenda urbana” ignorando por completo a dimensão deste flagelo humano.
          O crime organizado é o outro lado da moeda da globalização, afirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
          Norberto Bobbio em “A Era dos Direitos” remetendo-se ao que chamou de “extraordinária passagem de Kant” afirma que o atual debate sobre os direitos do homem – cada vez mais amplo, cada vez mais intenso, tão amplo que agora envolveu todos os povos da Terra, tão intenso que foi posto na ordem do dia pelas mais autorizadas assembléias internacionais pode ser interpretado como um “sinal premonitório” do progresso moral da humanidade.
         É o que todos nós desejamos.

5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. Na era dos Direitos. Nova Ed. Rio de Janeiro, 2004.
DA SILVA, Leila Maria Bittencourt. Direitos Humanos na Teoria e na Prática.  GZ Ed.,Rio de Janeiro,2009.
DA CUNHA, Manuela Carneiro. Negros Estrangeiros. Ed. Brasiliense, São Paulo,1985.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. Ed. RT,São Paulo, 2007.
NAIM, Moisés. Ilícito: o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global. Ed. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Ed. RT.  São Paulo, 2007.
PEREIRA, Bruno Yepes. Curso de Direito Internacional Público. Ed. Saraiva, Rio de Janeiro, 2007.

Brasil, Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
Brasil, Código Penal. Decreto Lei 2848/1940
Brasil, Estatuto do Estrangeiro. Lei 6815/1980. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Coletânea de Dir. Intrnacional. 8ª ed. 2009.










[1] O Desembargador Antonio Carlos Malheiros, representante do TJ de São Paulo na Comissão de Combate ao Tráfico de Pessoas da Sec. Est. de SP, afirma: "O Tráfico de pessoas já está em segundo lugar nas atividades criminosas mais lucrativas do mundo. Já superou o tráfico de drogas e perde apenas para o tráfico de armas" ( www.tj.sp.gov.br)
[2] NAÍM, Moisés. Ilícito. O ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global.
Jorge Zahar Editor.2006. p.86
[3] Resolução da Assembléia Geral da ONU, 1994.
[4] Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças (2000)
[5] Naím, Moisés. Ilícito: o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global. Tradução Sérgio Lopes. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 2006, p. 85.
[6] Dolores Cortes – Relatora da Reunião das Altas Autoridades Nacionais em Matéria de Tráfico de Pessoas, Venezuela, 2006.
[7] Plutarco. Alexandre e César. São Paulo, Ediouro, 2001.
[8] Da Cunha, Manoela Carneiro. Negros, estrangeiros. Os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985, p. 31/39.
[9] ARY, Thalita Carneiro. O tráfico de pessoas em tr6es dimensões: evolução, globalização e a rota Brasil /Europa. http://hdl.handle.net/10482/4359
[10] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Especial. V. III. Ed. Impetus, 2007.
[11] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. Ed. RT, 2007.
[12] NAÍM, Moisés. Ilícito: o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global. Tradução de Sérgio Lopes- Rio de Janeiro. Jorge Zahar. Ed. 2006. Página 85
         
[13] ONU –Brasil. www.onu-brasil.org.br
[14] Ministério da Justiça do Brasil – www. mj.gov.br
[15] Operação Castanhola – WWW.dpf.gov.br/DCS/notícias/2005/ - Operação realizada pela Polícia Federal em Goiás, desbaratando uma quadrilha que traficava mulheres para Espanha e Portugal .
[16] Relatório divulgado na Espanha pelo diretor executivo da UNODC, Antonio Maria Costa.
[17] ONU. www.onu-brasil.org.br
[18] NAIM, Moisés. Ilícito. Jorge Zahar Editor. 2006. p.89
[19] Idem.
[20] Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT relativa a princípios e direitos fundamentais do trabalho – Conferência Internacional do Trabalho, 89ª Reunião, 2001

[21] Benjamin Skinner é jornalista, pesquisador e autor do livro “A crime so monstrous. Face a face with modern day slavery”
[22] O primeiro condenado criminalmente por trabalho escravo, Antonio Barbosa de Melo, proprietário da Fazenda Alvorada, em Água Azul do Norte, sul do Pará, teve sua pena convertida em pagamento de 30 cestas básicas por seis meses.
[23] http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/iniciativas/iniciativas.php
[24] VILLELA, Fábio Goulart. Formas Contemporâneas de Escravidão Mídia Jurídica. Mural . N. 52/2008.
[25] Comissão Parlamentar de Inquérito com a finalidade de investigar a atuação de organizações criminosas atuantes no tráfico de órgãos, 2004.