Estive na escolha de samba da Grande Rio, escola de samba de Duque de Caxias (Baixada Fluminense), presidida por Jader Soares, “o amiguinho dos artistas” e tive o desprazer de presenciar uma cena grotesca, grosseira e truculenta: os seguranças, à mando do presidente, expulsando parentes e amigos dos ritmistas à toque de caixa de um espaço próximo à bateria, neste dia, reservado apenas para algumas "celebridades". Este episódio abominável me fez lembrar um livro maravilhoso escrito por uma historiadora chamada Ana Maria Rodrigues cujo título é Samba negro, espoliação branca (RODRIGUES, Ana Maria. Samba Negro Espoliação Branca. SP, 1984)
O livro mostra como os brancos foram assumindo o controle das festividades negras, em especial as escolas de samba. Bota o dedo na ferida mostrando a transformação das escolas de samba e o nível de conscientização do elemento negro quanto à usurpação que sofre com a infiltração de outros segmentos étnicos nessas festividades.
Antes de seguirmos adiante, vamos combinar: no Brasil, em regra, se é negro é pobre. É importante não esquecermos esse “detalhe” sempre que discutirmos algo que envolva questões raciais, e na verdade, qualquer outra questão.
Boa parte das escolas de samba no RJ foram tomadas por seus presidentes/patronos, homens “bonzinhos”, “generosos” e que “por amor ao samba” e a comunidade, resolveram investir e dirigir as agremiações de samba.
Definitivamente, muitas vezes não tenho o distanciamento necessário para tratar deste assunto, pois sou passional e indignada com esse estado de coisas!
Há poucas semanas, antes do primeiro turno das eleições, os componentes de setores cruciais desta mesma escola de samba (bateria, passistas, velha guarda, diretoria, mestre-sala e porta-bandeira) foram convidados para uma reunião onde lhes foram apresentados os candidatos em quem deveriam votar. No discurso de convencimento, destacaram que um determinado candidato “doou” o terreno onde se construiu a quadra, que é do povo de Caxias!
Na construção da quadra “que é do povo de Caxias”, especialmente dos sambistas, gente pobre, negra, de pouquíssima escolaridade, que mora nas favelas do Município, foram construídos enormes camarotes com ar-condicionado, serviço de buffet e outras mordomias mais. Só que os camarotes são para uso exclusivo do Presidente de Honra, do Patrono (filho do Presidente de Honra), do Presidente e do Diretor de Carnaval e seus convidados Vips, celebridades que não freqüentam a quadra, mas que têm seus lugares reservados na escola e no desfile.
Ao povo de Caxias coube um lugarzinho no espaço aberto de uma quadra sempre inundada, com cerveja cara, de uma única marca, com a qual a escola tem contrato de exclusividade.
O relacionamento que o Estado mantém com as escolas de samba, os controles oficiais a que estão submetidas, os regulamentos essencialmente limitativos e mesmo as verbas (subvenções) para ajudar no desfile, sem as quais, supostamente, ele não poderia acontecer, criam uma situação de dependência que reforça o círculo vicioso, cuja manutenção interessa ao Estado e a sociedade dominante por conseqüência, já que “o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer interesses comuns” Marx, K. A ideologia alemã, Ciências Humanas, SP, p.88.
A inserção da população branca dominante nas escolas de samba, além de acelerar transformações negativas nas festas, além de desvirtuar o verdadeiro sentido dos desfiles e dos ensaios, ocasionou, ao mesmo tempo, um processo mais grave: o gradativo branquemaento de tais manifestações e, como conseqüência, cada vez mais, valores e interesses também são branqueados”
“O grã-fino quer sair na escola prá ver sua fotografia nas revistas – agora é moda - o intelectual também, a madame também e com isso o sambista perdeu seu lugar"(Cartola, falando para Luiz Carlos de Oliveira, especial para o Jornal da Tarde, 23/2/1976).
O mestre tinha razão.