sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016
O LUGAR DO NEGRO NAS ALAS DE PASSISTAS DAS ESCOLAS DE SAMBA CARIOCAS
O samba como expressão cultural da diáspora africana
Oficialmente os desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro tiveram início em 1932. Estudos sobre o pensamento social brasileiro desta época revelam um país ávido na construção da sua identidade nacional, especialmente nas artes, através de um modelo de nacionalização onde o samba aparece como nosso mais autêntico símbolo, ao lado do futebol, da feijoada, da capoeira, da umbanda, da malandragem e do carnaval.
O surgimento dos primeiros blocos ou ranchos carnavalescos que deram origem as escolas de samba, se deu por volta de 1917 , época de exaltação ao que se considerava próprio do brasileiro, numa reação à onda imigrantista que predominava no país. Buscava-se a autenticidade, o folclore passou a ser valorizado e o negro considerado o melhor representante da cultura nacional. Foi um período de transição entre as teorias racialistas e as teorias culturalistas.
Dos aproximados 5 milhões de negros africanos introduzidos no Brasil durante o período escravocrata, parte deles foram trazidos de Angola, Congo e Moçambique. Eram considerados os mais festeiros e acredita-se que o samba primitivo descende das antigas danças de roda desses grupos.
A Abolição provoca a vinda de muitos baianos para o Rio de Janeiro, que se instalam nas proximidades do Cais do Porto, onde a moradia era mais barata e havia maiores possibilidades de trabalho (MOURA, 1983). Mais tarde, com a Reforma Pereira Passos, com o intuito de remodelar e higienizar (gentrification) a cidade entre o final do século XIX e início do século XX, novos modelos de moradia surgem na região central do Rio de Janeiro, incluindo cortiços e favelas, onde iria morar parte dessa população negra.
Se como escravo a vida do negro era sofrida e apartada de condições sociais dignas, como liberto o Estado não se importou com o que lhes aconteceria, já que nenhuma política lhes foi reservada. O mercado de trabalho priorizava os imigrantes, o preconceito dificultava a inserção dos negros nas indústrias, no comércio e no funcionalismo público.
A presença dos negros, na Rio de Janeiro inspirada em Paris, era sinônimo de atraso, expressavam em suas relações cotidianas manifestações culturais de origem africana e lembravam a sociedade o que todos queriam esquecer: a escravidão. Os republicanos reprimiam qualquer tipo de atividade cultural dos negros, que se organizavam a seu modo, a situação se tornava cada vez mais difícil já que a lei penal da época criminalizava andarilhos, mendigos, desocupados, vadios e capoeiras.
A marginalização sócio-econômica do negro era evidente final do século XIX através de sua exclusão pelas instituições, tornando-o cada vez mais incompatível com o mercado de trabalho urbano. Essa desqualificação não era puramente técnica, era também cultural. Os costumes, a religião, o lazer, os modelos de comportamentos, e a principalmente a cor da pele eram negativamente estigmatizantes para eles.
A implementação do sistema de trilhos, em 1858 levou essa população desabrigada do Centro do Rio de Janeiro a migração para novos espaços geográficos. A construção da Estrada de Ferro Central do Brasil possibilitou o acesso à vasta região ao redor da malha do novo transporte urbano (MARTINS, 2009).
O samba inicialmente foi produzido nos morros do Rio de Janeiro, depois chegou aos bairros da zona norte, mas com a repressão policial sempre presente. Atribui-se a Paulo da Portela importantes iniciativas para tornar o samba mais “bem visto” socialmente. Foi o principal articulador junto às autoridades na luta pela legalidade do samba como também o primeiro a estabelecer relações mais achegadas com a imprensa e a política, impondo, inclusive, o uso do termo e do chapéu, ainda hoje prestigiado pelos sambistas portelenses.
A participação de pessoas ligadas aos cultos afros na formação das escolas de samba já foi apontada por diversos autores, mostrando o samba como expressão de resistência ao mesmo tempo em que fortalece sua prática cultural identitária. Bastide (1971) considerou samba e candomblé “organizações africanas”.
O samba é um elemento importante constitutivo da nossa identidade social e cultural, como afirma Da Matta no prefácio do livro de Roberto M. Moura (2004). Buscando construir um ethos brasileiro através de uma cultura tropical totalmente diferente das de outros países, manifestações culturais que estavam inicialmente restritas a certos grupos sociais, como pobres e negros, são apropriadas por parte do resto da sociedade e transformadas em símbolos nacionais assumindo assim um caráter de identidade brasileira.
Com a crescente importância do carnaval para a economia da cidade e posteriormente do país, o samba passou a ser aceito e desejado por todo o resto da população, mais que isso, o samba se tornou uma das maiores representações da cidade do Rio de Janeiro e da nação brasileira (FERNANDES, 2001).
O samba se embranquece
O samba é um termo de ampla abrangência e não deve ser entendido de forma fragmentada: é um gênero musical, um lugar onde sambistas se reúnem e também uma dança, através da qual observei o lugar do passista negro nas escolas de samba cariocas.
Eram negros os primeiros dançarinos solistas dos cortejos carnavalescos, que abriam os cortejos ao ritmo de percussão e cantoria. Esses dançarinos são os passistas atuais. Assim como no Recife os capoeiras, ao som das marchas e dos dobrados, criaram os passos do frevo; no Rio de Janeiro, o mesmo fenômeno iria se repetir a partir de 1870, com os caboclos dos ranchos carnavalescos. Mais tarde, por volta de 1920, esses dançarinos negros comporiam as escolas de samba, com suas músicas, danças e seus instrumentos com fortes traços africanos, uma forte representação cultural da afro diáspora.
O afoxé, segundo Nina Rodrigues é o “candomblé das ruas”, “da África inculta que veio escravizada para o Brasil”. O samba é seu similar no Rio de Janeiro. Na Bahia ou no Rio de Janeiro, havia samba onde estavam os negros reunidos, como inequívoca forma de resistência à degradação e diluição de costumes lúdicos e religiosos. O samba se tornou a principal música de influencia africana introduzida no Brasil, diversificando-se em formas regionais
No início das escolas de samba o componente negro era prevalente em todos os setores; atualmente seu predomínio é principalmente nos setores não remunerados e que exigem maior dedicação de tempo, esforço físico e habilidade técnica, como a bateria e passistas. A ala da bateria é composta por ritmistas, músicos que tocam instrumentos de percussão que sustentam a escola musicalmente durante o desfile. Já os passistas são os exímios dançarinos da dança do samba, responsáveis por levarem pra avenida o “samba no pé” da escola.
Mas considero importante analisarmos essa prevalência a luz de um conceito novo: o colorismo.
O colorismo foi utilizado originalmente pela escritora e ativista negra Alice Walker em 1982. Refere-se a um tipo de racismo onde os negros são mais ou menos aceitos de acordo com o tom de suas peles. Quanto mais clara a cor da pele, maior a possibilidade de aceitação. Ao longo da minha pesquisa sobre passistas de escolas de samba, iniciada em 2012, observei a ocorrência desse fenômeno em algumas alas de passistas de escolas de samba, especialmente no grupo feminino.
As alas desfilam com aproximadamente 80 passistas, sendo metade desse contingente formada por mulheres negras majoritariamente. Entretanto, são negras com tom de pele mais claro e cabelos menos crespos chamadas de “mulatas”.
Internamente a ala de passistas é dividida em pequenos subgrupos diferenciados pelo figurino e pela coreografia que apresentam: passistas (propriamente ditas), africanas e mulatas. No subgrupo africanas concentram-se as passistas de pele mais escura, com roupas mais simples, descalças e com coreografias predominantemente de dança afro adaptado ao samba. Nos subgrupos passistas e mulatas, estão as passistas brancas e negras de pele mais clara, com figurinos mais elaborados e mais expressivos visualmente.
É comum que os próprios sambistas citem a diferença entre as categorias passista e mulata. Passista é a dançarina do samba que apresenta o “samba rasgado”, um tipo de samba que requer do dançarino mais força, rapidez e intensidade nos movimentos. Já a mulata é a dançarina de samba que primeiro se profissionalizou, de palco, muitas delas sem nenhuma vinculação com Escola de Samba. Costumam fazer shows dentro e fora do Brasil. O samba que elas dançam é mais coreografado e com movimentos mais suaves.
Com o processo de espetacularização, agigantamento e departamentalização das Escolas de Samba, os passistas estão sendo mais preparadas para show e apresentações, evitando que a Escola contrate dançarinos de fora para seus eventos.
Num Curso de Formação Profissional de Mulatas promovido pelo SESC/RJ (1980/1990), objeto de pesquisa etnográfica sobre a construção de identidades de gênero e raça/cor, Giacomini (2006) observou através das narrativas das entrevistadas, que há várias maneiras de ser e definir o termo mulata. A pesquisadora optou por agrupá-los em dois grupos: o dos atributos inatos (coletivos e individuais) e os adquiridos. Os inatos coletivos dizem respeito aos negros em geral (cor, saber sambar, ter o samba no sangue); os inatos individuais dizem respeito a características pessoais (ter corpo bonito, ser alta, ter corpo “violão”, bunda empinada). Os atributos adquiridos tratam da questão profissional ou do aprendizado - paradoxal em certo sentido – de se aprender a ser o que se é - (comportar-se segundo as exigências da profissão, ser profissional, ser responsável, saber enfrentar o publico, saber se produzir, saber interagir com o publico). O que se buscava nesse curso era a mulata típica, a verdadeira mulata paradigmática, exótica e exacerbadamente sexualizada, “que corresponde a um imaginário presente na sociedade brasileira” .
Gilberto Freyre que tão bem tratou das relações intimas e privadas entre brancos e negros em Casa Grande e Senzala, nos disse a esse respeito em 1936:
o bom senso popular e a sabedoria folclórica continuam a acreditar na mulata diabólica, superexcitada por natureza [...] Por essa superexcitação, verdadeira ou não, de sexo, a mulata é procurada pelos que desejam colher do amor físico os extremos de gozo, e não apenas o comum .
E antes dele, Nina Rodrigues considerou “anormal” a suposta “excitação sexual da mulata brasileira”.
A presença da mulher negra nas escolas de samba sempre foi de suma importância. Dançar no terreiro, hoje chamado de quadra, era privilégio delas, das pastoras, num memorial das tradições africanas, tal como se vê também no candomblé. Por volta dos anos 50, o show bussiness carioca passou a recrutar essas mulheres para suas produções, visando mais a plástica que o talento no dançar. Ney Lopes (1981) observou essa transição:
As damas antigas deram lugar às vedetes com suas plumas e paetês, tangas e pernas de fora; o samba no pé foi relegado a segundo plano (mesmo pela impossibilidade de se sambar com saltos altíssimos, modelo de plataforma, num arremedo dos tempos do teatro de revista), face a importância do rebolado, do “bole-bole”, muito mais sensual e sugestivo.[...] E certamente abriu caminhos profissionais para muitas negras, em busca de uma ascensão social, que lutam ardentemente por ser uma “mulata que não está no mapa”, numa exaltação duvidosa de sua condição feminina e num aviltamento de sua circunstância racial.
São poucos os negros de pele escura nas alas de passistas das escolas de samba investigadas. O negro cuja presença é maioria nas alas de passistas, é o mestiço, o mulato, o negro de pele mais clara.
As escolas de samba passaram por um processo de branqueamento, à semelhança de outras heranças da cultura afrodiaspórica presentes no Brasil. Esse processo é resultado da inclusão de pessoas brancas neste tipo de manifestação, que alguns autores entenderam como espoliação sócio-cultural, como destacou Rodrigues (1984):
A inserção da população branca dominante nas escolas de samba, além de acelerar transformações negativas nas festas e desviar o verdadeiro sentidos dos desfiles e dos ensaios, ocasionou ao mesmo tempo, um processo mais grave: um paulatino branqueamento de tais manifestações, e como conseqüência, cada vez mais, valores e interesses também são branqueados.
No concurso para a Corte do Carnaval da Cidade do Rio de Janeiro em 2010, composta por 1 Rei Momo, 1 rainha e 2 princesas, apenas o homem era negro, todas as mulheres eram brancas de cabelos loiros.
Praticamente todos os presidentes e dirigentes de escolas de samba são brancos. Hierarquicamente os negros estão em posição inferior na organização das escolas de samba. Em regra, os negros criam, sambam, tocam, dançam, trabalham e geram lucro para as escolas de samba; os brancos dirigem, coordenam, retiram vantagens e ganham status.
Os sambistas negros anseiam pela profissionalização – especialmente os passistas - como caminho para sua ascensão social através do samba. Passariam assim de ”sambistas” a “bons cidadãos”. Ney Lopes (1981), há 34 anos considerava utópica a ascensão social do sambista e destacava a presença do elemento estranho, a atuação da imprensa, aliado ao sonho de uma profissionalização que nunca ocorreu verdadeira e globalmente como fatores que, ao longo de tempo, destruíram o espírito de comunidade que caracterizou as escolas de samba até certa época. Entretanto, a história não é linear e a cultura tem sua dinâmica e seus hibridismos que apontam para novas possibilidades, sempre.
BIBLIOGRAFIA
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil – contribuição a uma sociologia das interpretações de civilizações. 2v. São Paulo: Livraria Pioneira; Edusp, 1971.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1985 (1936).
GIACOMINI, Sonia Maria. Natureza e aprendizagem num curso de formação, 1992. Dissertação Mestrado. Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal Fluminense.
LISBOA, Salete; LOUREIRO, Marcelo. Portela, 90 anos de história. Ed. Sade, 2013.
LOPES, Helena Theodoro. Negro e Cultura no Brasil.
LOPES, Ney. O samba na realidade: a utopia da ascensão social do sambista. CODECRI, Rio de Janeiro, 1981.
MARTINS, Ronaldo Luiz. Mercadão de Madureira: caminhos de comércio. Condomínio do Entreposto Mercado do Rio de Janeiro, 2009.
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. FUNARTE, 1983.
RODRIGUES, Ana Maria. Samba negro, espoliação branca. Hucitec, São Paulo, 1984.
RUFINO, Luiz. História e Saberes dos Jongueiros. Editora Multifoco, 2014.
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