domingo, 3 de janeiro de 2016

AINDA RESTA UM POUCO DE ESPERANÇA, APESAR DAS DESAVENÇAS: amizade e respeito entre os passistas

O samba traz em si características próprias da cultura negra, como a reverência aos ancestres, respeito aos mais velhos e valorização da memória através da preservação das tradições.

Ontem, no primeiro ensaio do ano na quadra da minha querida Mangueira, inebriada pelo belíssimo samba que evoca as forças de Oya sobre uma escola já tão forte e vibrante, não pude deixar de observar, especialmente entre os passistas, como essas condutas, felizmente, ainda se fazem presentes na escola de samba.

O ancestre está ligado à história dos seres humanos, a história hereditária, familiar de cada um de nós. Interioriza seu pertencimento a um grupo social limitado, marcando emblematicamente seus valores éticos e suas formas de conduta (SANTOS, 1984)

. A Mangueira, em seus 88 anos de idade, é o lugar onde muitas famílias tiveram suas histórias inscritas e seus descendentes estão ainda por lá, com mais ou menos protagonismo. Lá é “onde se junta o passado, futuro e presente” . Saturnino Gonçalves foi o primeiro presidente da escola em 1928; oitenta anos depois, em 2008, sua neta Chininha assume o mesmo cargo. Outro bom exemplo é o de Roberto Firmino, que assumiu a presidência da escola em 1992; atualmente sua filha Guanaíra Firmino é a diretora responsável pelas alas da Comunidade . Muito se diz sobre as vaidades e egos inflamados presentes no mundo do samba, mas pouco se fala sobre a reverência, respeito e amizade que subsiste e ainda pode ser vista entre os passistas. Não importa se aquele que hoje reverencia, amanhã critica ou até fala mal, isso faz parte da dinâmica da vida, do movimento, da transformação e da mudança de ações e opiniões.
No dia da escolha de samba, em outubro do ano passado, o jovem passista Renam Oliveira usou uma camisa com a seguinte frase estampada: “Gargalhada, Romero, Indio e Celso, o meu passo é o teu”. Foi uma comoção geral! Os passistas citados, são grandes nomes na história da Escola, todos ainda em atividade, exceto Gargalhada, falecido em 2003. Jofre Santos, há mais de 30 anos na escola, fotografado por J.M. Arruda durante o ensaio técnico na Sapucaí foi muito elogiado e exaltado nas redes sociais pelo seu valor como um passista veterano e que tão bem representa a Mangueira.

A função social do mais velho é guardar e transmitir os saberes, a memória e as tradições, ligando o passado ao presente, garantindo assim o futuro daquela cultura. São fundamentais na formação identitária do grupo. Nos encontros, as histórias narradas - e são muitas histórias! – são formas de transmissão de experiências, que acumuladas, dizem o que é ser passista.

É comum que passistas mais jovens incorporem alguns trejeitos dos mais velhos, criando assim um estilo de samba próprio daquela escola. O “mais velho” nem sempre é tão mais velho assim, pode ser o que possui mais experiência de desfiles, o mais premiado, ou aquele cuja qualidade do samba é inquestionável. Valesca, uma conhecida passista da Portela nos anos 80/90, afastada dos desfiles e das quadras há muitos anos, foi vista ontem no ensaio em Mangueira e recebida com muita festa. Fábio Fuly, considerado um passista “de alta performance” premiado e também veterano, tocou-lhe os pés enquanto sambava na roda, em sinal de respeito e reverência. Um dos gestos mais bonitos que já presenciei numa roda de samba!

O imediatismo, a profissionalização, o gigantismo e a excessiva competitividade podem, em certa medida, provocar um apagamento do legado deixado pelos mais velhos e um esvaziamento afetivo nas relações entre os passistas e sambistas de maneira geral, mas enquanto isso não acontece, ainda podemos celebrar o samba, com muito amor, carinho e amizade, como fizemos ontem, até as 5h da manhã, na quadra da Estação Primeira de Mangueira.

Santos, Juana Elbein dos. Os nagôs e a morte: padê, àsèsè e o culto Éguns na Bahia. Vozes, 1984. Trecho da música “Meninos da Mangueira” de Ataulfo Alves. www.mangueira.com.br