terça-feira, 26 de novembro de 2013

PASSISTAS E MALANDROS, ENTRE A VIDA E O PERSONAGEM



Há muita discussão e barulho nesse tema que permeia questões de expressão artística, religião e gênero sexual entre os passistas masculinos. Passista é todo sambista que domina o samba no pé, o solista da dança do samba com grande capacidade comunicacional através desta dança. Institucionalmente, deve estar ligado a uma ala de passistas em alguma escola de samba ou bloco.  

Mas o que tem a ver passistas com malandros? Selecionei alguns estudos e depoimentos de alguns sambistas sobre o assunto.

Segundo Roberto Goto: "A estória da cultura brasileira registra duas linhagens de malandros: uma do século 16, iniciada com o hábil menestrel Francisco de Vacas, incorrigível comparsa de D. Álvaro da Costa Filho, o primeiro boêmio do Brasil; a outra viria dos africanos, do negro ladinos que por força dos martírios da escravidão, obrigava-se a aprender as artimanhas de seus pares, com quem convivia, para evitar punições  e garantir sua segurança"

Há muito que a figura do malandro habita o imaginário brasileiro, fazendo-se presente nas formas de saber ligadas à tradição oral. A origem do malandro está ligada às camadas negras e pobres da população e remonta ao final do século XIX, com a abolição da escravatura. Em tal cenário, a negação do trabalho, por parte de negros recém-libertos, aparecia como forma de recusa a qualquer ameaça à liberdade então obtida. Muitos assumiam trabalhos temporários, que logo eram substituídos pelo ócio e pela vadiagem. Empenhavam-se em usar seus corpos para o prazer, como possibilitado, por  exemplo, pela dança (CABRAL, 2012).

O que não quer dizer que todo "malandro" sambasse. Meu avô, Oscar Ferreira Martinho foi um grande malandro de sua época, mas pelo que eu sei, não sambava. Tive a oportunidade de conhecer muitos Malandros e nenhum deles gostava muito de sambar no pé. Vejamos o que contou  Herivelton Martins numa entrevista à José Carlos Rego:

"O comportamento das pessoas modificava-se lentamente nos anos 40, homem por exemplo, não sambava fora do morro. Nos desfiles apenas evoluía, marcava passo, mas não sambava" (REGO, 1996).

E mais opiniões a respeito:

"Quem falar em samba de malandro atualmente, ou não sabe o que é samba ou não sabe o que é malandro"
Dionísio Mendes, ex passista, ex mestre-sala e atual membro da diretoria do Salgueiro.

"Não existe samba de malandro, existe samba masculino"
Wagner Gaspar, passista.

"O tão falado samba de malandro é para mim apenas uma opção de estilo de bailar, se vestir, e consequentemente se comportar [...] malandro não está condicionado a ser passista [...] sofro influencias de outras danças populares e acho importante em virtude da individualidade criativa do passista"
Fábio Batista, passista, bailarino e coreógrafo.

Atualmente quase todas as alas de passistas masculino adotam o estilo "malandro", o que se traduz no figurino e na coreografia, que juntos compõe o personagem do malandro.
Quanto ao figurino é bem verdade que os ternos "a la" malandro anos 30, só são usados nos ensaios e em algumas esparsas apresentações, já que no desfile os passistas masculinos vestirão uma fantasia adequada ao enredo, que geralmente em nada lembra o tal perseguido estilo malandro.
Entendo o samba, e me refiro à dança, como algo natural no passista, algo que flui, que lhe escapa, de maneira quase incontrolável quando ele ouve o samba. Seus passos são irrepetíveis, criativos e improvisados. Não há lugar para coreografias que interfiram no samba propriamente dito. E as expressões corporais são oriundas de sentimentos pessoais e da cultura. Quem nos confirma isso é Gabriel Castro, coordenador de passistas do GRES Imperio Serrano e defensor do estilo ao relatar toda sua vivência numa família de sambistas:

" [...] este personagem começou a se compor dentro de mim ainda na casa da família do meu pai [...] tinha seis tios, todos malandros [...] o samba faz parte de mim desde minha concepção [...] além da própria família observava os mais antigos [...] como efetivamente não tive ninguém prá ensinar-me, desenvolvi um estilo próprio [...] .

O mesmo serve para o estilo malandro de ser. Um estilo é próprio, é pessoal, se encaixa ou não, deve ser natural na pessoa que o adota. Como se pode querer impor a alguém algo que não faz parte da sua vivência cultural? Marcel Mauss afirma que tudo que fazemos com nosso corpo é resultado da nossa formação cultural.
E a discussão se agrava no tocante aos homossexuais. É inegável que muitos passistas são homossexuais. Se por um lado não devem sambar como mulheres, por outro, não devem ser obrigados a sambar como se malandros fossem. Resultado dessa imposição: uma imitação forjada e de mal gosto. Ah! mas antigamente os passistas homossexuais sambavam como homens. Ok. Mas antigamente, não só no samba, como em qualquer outro lugar da sociedade, os homossexuais eram proibidos de "sairem do armário", no samba não seria diferente. Mas as coisas mudaram e recentemente um passista de uma escola do grupo especial no Rio de Janeiro ameaçou processar seu coordenador acusando-o de homofóbico por ter censurado seu jeito de sambar, comparando-o a uma cabrocha.
Observo uma certa carência na construção de identidades dos passistas a partir das suas próprias vivências no samba, parece haver um certo desconhecimento acerca de suas próprias representações, o que acaba propiciando métodos estranhos de transmissão deste saber. Se um passista precisa ser ensinado a sambar, ele não é um passista. A beleza do samba dançado está na originalidade. E o mais curioso é que os passistas mais expressivos afirmam que não foram ensinados, não receberam aulas nem qualquer instrução, aprenderam por convívio e observação.
Prevalece um antigo ditado popular: "Faça o que eu digo mas não faça o que eu faço"
E você, o que pensa sobre isso?